Lisnave - História Indústria Naval



Lisnave, Contributos para a História da Indústria Naval em Portugal

 

Miguel Figueira de Faria (coord.), LISNAVE, Contributos para a História da Indústria Naval em Portugal, Lisboa, Edições INAPA, 2001.

 

Luciano Amaral
Faculdade de Economia, Universidade Nova de Lisboa

 

São em número muito reduzido as histórias de empresa em Portugal. No entanto, este é um género com ramificações para vários campos científicos: a economia industrial, a microeconomia, a história económica, a história social, a história empresarial. Num contexto tão rarefeito de obras deste teor não pode deixar de saudar-se a publicação de uma história de empresa. Não se tratando, aliás, de uma empresa qualquer, mas sim da LISNAVE, uma empresa-símbolo em Portugal ao longo de quase vinte. Acrescendo que a LISNAVE constituiu durante algum tempo uma espécie de “jóia da coroa” do grupo económico historicamente mais importante do nosso país, a CUF (antecedente directo do hoje menos significativo Grupo Mello). A obra em análise, LISNAVE, Contributos para a História da Indústria Naval em Portugal, foi publicada em 2001 pelas Edições INAPA e coordenada por Miguel Figueira de Faria, tendo contado com a redacção de vários autores, Ana Paula Tudela, Paulo Espírito Santo, Paulo Fernandes, Paulo Oliveira e Vanda Saio te, todos eles historiadores ligados a uma instituição especialmente vocacionada para a história empresarial, o Grupo de Estudos de História Empresarial da Universidade Autónoma de Lisboa. O título da obra não deixa nenhum mistério quanto ao seu conteúdo. Trata-se exactamente daquilo que anuncia, uma história da LISNAVE. Sendo a história desta empresa relativamente curta e recente, como profissionais competentes que visivelmente são os autores do livro não deixam de nos oferecer um enquadramento histórico e cronológico um pouco mais alargado. O livro divide-se em oito capítulos, que vão desde o papel da construção naval dentro do grupo CUF a partir de finais do século XIX (capítulo I, onde se fazem ainda outras notas históricas mais genéricas sobre o estuário do Tejo, a construção naval e a sua ligação à economia e política do país), os antecedentes da instalação da LISNAVE no estaleiro da Margueira, nomeadamente através do estudo do estaleiro da Rocha do Conde de Óbidos (capítulo II), o processo político-económico conducente à criação da LISNAVE (capítulo III), passando pela criação da LISNAVE propriamente dita nos anos 60 (capítulo IV) e continuando pela sua evolução nas décadas seguintes: inícios da década de 70 (capítulo V), de 1974 a 1979 (capítulo VI), a década de 80 (capítulo VII) e a década de 90 (capítulo VIII). O livro tem uma natureza essencialmente comemorativa, sem que isto deva ser entendido de maneira depreciativa. Há lugar para esse tipo de obras, sobretudo quando o comemorativo não implica o panegírico e é feito com o ri gor e a competência do caso vigente. O livro oscila entre o tipo coffee-table book e a obra científica, o que também não deve servir para o desvalorizar, antes serve aqui apenas para descrever a sua natureza.
 

Os méritos da obra (para além do mérito genérico notado no primeiro parágrafo: o de ser uma história de empresa num contexto em que elas tanto escasseiam) são inúmeros. A redacção é baseada numa consulta aprofundada de documentos, não só os disponíveis nos tradicionais locais de consulta (como a Biblioteca Nacional) como também em arquivos da empresa e pessoais. O relato da história da empresa é exaustivo e completo, conduzindo-nos ao longo de uma narrativa cronológica. A lógica narrativa poderia ser outra, com base em temas eleitos como de particular relevância. Mas, dada a natureza comemorativa da obra, talvez a organização cronológica seja a mais ajustada. O aprofundamento de certos temas, contudo, talvez pudesse ter lugar neste contexto. Tentarei fazer algumas considerações adicionais sobre isto um pouco mais à frente. A obra constituirá ainda, certamente, uma fonte essencial não só para a análise do seu objecto de estudo concreto (a LISNAVE propriamente dita) como para vários tópicos de históri a económica, social, empresarial e também política que queiram ser abordados noutros estudos. Somando-se a isto a apresentação de curiosos documentos fotográficos, ilustrando a história do período anterior á criação da empresa, seus primórdios e posterior evolução. Acresce que o livro tem um bónus: um curto mas interessantíssimo prefácio por José Manuel de Mello que, entre outras coisas, ajuda a desfazer o preconceito da iliteracia económica, da incapacidade de arriscar e da falta de argúcia dos nossos empresários. Sem querer menosprezar os autores da obra, as melhores pistas teóricas explícitas (há outras implícitas, igualmente interessantes, noutras páginas do livro) que ela apresenta estão neste prefácio. Regressarei a isto.
 

A obra mostra bem como a LISNAVE é o corolário de uma evolução empresarial começada em finais do século XIX, a partir de duas pequenas empresas químicas (para fabrico de sabão, sabonetes, velas, óleos e tabaco), a Companhia União Fabril e a Companhia Aliança Fabril. Num percurso a todos os títulos extraordinário, nomeadamente no contexto português, a fusão destas duas pequenas empresas na Companhia União Fabril (a CUF) a partir de 1898 deu origem a um notável processo de integração vertical e horizontal. Os produtos das empresas iniciais tinham como subproduto determinados tipos de adubos rudimentares. Daqui para adubos mais complexos (superfosfatos) foi um passo simples de dar, ainda nas últimas décadas do século XIX. A necessidade de embalar estes fertilizantes levou ao desenvolvimento de uma indústria de sacaria e, portanto, a uma diversificação para o ramo têxtil. A necessidade de os transportar levou à construção no Barreiro de um cais de embarque e de uma pequena metalomecânica para construções e reparações diversas. Esta expansão genérica da empresa conduziu à vontade de ter acesso a fontes de financiamento por si directamente controladas, daqui resultando o controle, através de uma parcela significativa do seu capital, da Casa Bancária José Henriques Totta, em 1921. A atenção dada aos transportes levou a interesses da CUF nas colónias, levando o desenvolvimento do ramo dos óleos alimentares tropicais. É também em resultado do interesse nos transportes que, a partir dos anos 30, a exploração do Estaleiro Naval da Rocha do Conde de Óbidos é concedida ao grupo CUF pela Administração-Geral do Porto de Lisboa. Seria da experiência daqui resultante que, 30 anos depois, o grupo se lançaria num dos seus mais importantes projectos: a criação da LISNAVE, empresa de construção e reparação naval.
 

O interesse desta evolução, que em si mesmo já seria muito, é aumentado pelo facto de ela possuir inúmeras ligações com diversos momentos da política económica do país. Exemplos disso são a expansão da produção de adubos em finais do século XIX, estreitamente dependente da política de proteccionismo cerealífero das décadas de 80 e 90; também a crescente ligação às colónias, em consequência do aprofundamento das políticas coloniais durante a I República e o Estado Novo, bem como da crise internacional dos anos 30; igualmente, os projectos de formação da marinha mercante, a que está indissociavelmente ligada a concessão da exploração do estaleiro da Rocha à CUF. Precisamente este episódio abre portas para outro aspecto da história contada neste livro que assume extrema importância: as ligações entre a CUF e o Estado. Neste contexto não interessam apenas as consequências da política económica sobre a actividade da empresa, mas antes as estreitas relações entre os responsáveis de ambas as instituições. Aqui os autores da obra oferecem-nos documentação extremamente interessante, nomeadamente epistolar, em que se revela um pouco da natureza dessas ligações. E oferecem-nos também documentação sobre a instalação da LISNAVE propriamente dita, nomeadamente no âmbito do processo de condicionamento industrial em que inevitavelmente a empresa se teve de envolver antes da (e durante a) sua existência.
 

Outros aspectos sobressaem nesta história, sendo que, para eles, a LISNAVE constitui um objecto privilegiado de estudo. Um é o da ligação ao investimento estrangeiro. Embora penetrando de maneira crescente na nossa economia ao longo do século XX, o investimento estrangeiro só muito tarde passou a constituir uma parcela significativa do total do investimento feito em Portugal. Neste domínio, primeiro a CUF genericamente, depois a LISNAVE em particular, são atípicas na precocidade com que contactaram com investidores estrangeiros. Como se sabe, o investimento incorpora tecnologia, e, portanto, a ligação ao investimento estrangeiro desde cedo fez tanto da CUF como da LISNAVE dos raros agentes económicos portugueses a utilizar tecnologia comparável à existente em países mais desenvolvidos. Outro aspecto da dimensão internacional da história narrada neste livro é a estreita ligação da actividade da LISNAVE às várias conjunturas internacionais do último terço do século XX. Trata-se de um tópico explorado com profundidade na obra, entre os capítulos IV e VIII, justamente os mais directamente relacionados com a história da LISNAVE propriamente dita.
 

Nenhuma obra é perfeita e aquela agora analisada também não escapa a esta regra. Penso que tenha ficado clara a sua importância e qualidade. As observações que se seguem não pretendem desmentir o que sobre este livro foi dito até agora. Mas, inevitavelmente, como qualquer outra, também esta obra tem aspectos menos conseguidos. A principal crítica substancial que lhe faria seria a de uma certa ausência de teorização. Compreende-se que um livro (como foi dito no início) com um certo tom comemorativo não abunde em teorizações. Mas, mesmo dando esse desconto, talvez um pouco mais de elaboração neste domínio pudesse enriquecê-lo. A história da CUF e da LISNAVE é muitas vezes um repositório de certos temas típicos da teoria da empresa: a integração vertical e horizontal das actividades, as ligações banca-indústria, a política e a economia, o Estado e as empresas, o papel do investimento estrangeiro, a questão dos recursos naturais e o papel do mercado mundial no comportamento de certas empresas. Qualquer destes aspectos poderia ser apresentado teoricamente e o caso da LISNAVE e da CUF analisado à luz dessas teorias. Provavelmente a teoria ajudaria a dar uma outra racionalidade a um percurso que embora extraordinário à escala de Portugal é bastante comum noutros países. As implicações a retirar daí também poderiam ser enriquecidas, nomeadamente na contribuição do Grupo CUF e da LISNAVE para a economia portuguesa em vários domínios: modernização da estrutura empresarial, nova tecnologia, modernização institucional (ligação banca-indústria), etc.
 

Mesmo se estes temas não fossem abordados explicitamente em termos teóricos, talvez houvesse lugar na organização da obra a uma síntese onde se procurassem retirar algumas lições genéricas da história da LISNAVE tendo em consideração os aspectos mencionados. Falta a este livro uma certa “moral da história”, talvez resultante da sua autoria colectiva. Mas não seria muito difícil fazê-la, dada a abundância e riqueza de informação que vai sendo disponibilizada ao longo das páginas da obra. Curiosamente acaba por ser o prefaciador, por coincidência também um dos agentes históricos envolvido na história, José Manuel de Mello, a apontar tanto algumas pistas teóricas como a tal “moral da história”. Isto é visível na menção que faz ao estatuto internacional da empresa e correspondente ligação ao mercado mundial, de que resultaria, entre outras coisas, a necessidade de constante melhoria tecnológica. Extremamente interessante, no prefácio, é a apresentação da dessincronia entre as ambições mundiais da LISNAVE e os constrangimentos internos. De acordo com José Manuel de Mello estes constrangimentos internos seriam muito visíveis, por exemplo, na proverbial ineficiência burocrática da nossa administração pública. Seriam visíveis, ainda, durante os episódios em torno do 25 de Abril, do PREC e da legislação laboral vigente no país desde então aproximadamente. De acordo com o prefaciador tudo isto teria colocado a LISNAVE em situação de desvantagem à escala mundial a partir de meados da década de 70, nomeadamente porque os seus competidores mais directos, como por exemplo os países do sudeste asiático, teriam sido capazes de conter as reivindicações laborais dentro de limites que não ameaçaram a sobrevivência das suas empresas. É aqui que José Manuel de Mello apresenta a sua visão da empresa como um organismo onde deve prevalecer a cooperação entre as partes, nomeadamente entre as duas classes de rendimento, o capital e o trabalho. Só essa cooperação permitiria, na sua opinião, a afirmação consistente da LISNAVE no mercado mundial. Esta evolução aparece ainda ligada no prefácio àquilo que o seu autor chama a passagem do “capitalismo empresarial, ou industrial, para o capitalismo patrimonial, ou financeiro”, querendo ele significar aqui a passagem das empresas de base familiar às empresas com uma largo número de accionistas e administração delegada em gestores. Isto, de resto, imporia um constrangimento adicional à LISNAVE: a necessidade de manter os dividendos dos accionistas com um retorno aceitável. Enquanto que na empresa de base familiar haveria a possibilidade de uma gestão mais flexível na distribuição dos rendimentos, no caso das grandes empresas accionistas essa flexibilidade não seria tão fácil. O prefácio termina com uma profissão de fé sobre a construção naval em Portugal. É, mais vez, o tema dos recursos naturais do país (neste caso a sua posição na costa atlântica) como instrumento essencial de afirmação da nossa economia no mundo. As sugestões de José Manuel de Mello são interessantíssimas. Os autores do texto teriam aqui algo por onde pegar para compor um pouco mais a obra.
 

Feitas estas críticas, não pode restar senão a recomendação de uma obra pioneira, cuidada, bem investigada, muito informativa e que abre inúmeras pistas para investigações futuras.

 

Fonte - Universidade Nova Lisboa 

 










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